Tuesday, December 12, 2006

E agora, um momento cultural


“Tinha a resistência de uma bactéria obstinada e a frugalidade de uma carraça agarrada a uma árvore e que se alimenta de uma gota de sangue, que rapinou anos atrás. O seu corpo apenas necessitava de um mínimo de comida e de roupas. A sua alma de nada precisava. Os sentimentos de estabilidade, afecto, de ternura, de amor, ou lá como se chamam todas essas coisas que se afirma serem indispensáveis à criança eram, por completo, dispensáveis ao pequeno Grenouille. Parece-nos mesmo, pelo contrário, que a fim de conseguir viver, ele decidira simplesmente pô-las de lado para sempre. (…) Fora um grito deliberado, quase poderia dizer-se um pouco prematuramente deliberado e através do qual o recém-nascido tomara partido contra o amor, e, no entanto, a favor da vida. Cabe vincar que, dadas as circunstâncias, esta última só seria aliás possível sem o primeiro, e caso a criança tivesse exigido ambos, decerto não tardaria a morrer miseravelmente. É verdade que, naquele momento, poderia ter escolhido a segunda possibilidade que se lhe oferecia: calar-se e passar do nascimento à morte, sem fazer o percurso através da vida, poupando simultaneamente ao mundo e a si próprio uma série de infortúnios. Para se esquivar, no entanto, teria necessitado de um temperamento submisso inato e isso era coisa que Grenouille não possuía. Foi logo de início, um ser abominável. Apenas escolhera a vida por uma questão de desafio e pura malvadez.
Não a escolheu, naturalmente, como o faz um adulto, servindo-se da sua experiência e do maior ou menor índice racional quando se vê frente a duas opções distintas. Contudo, escolhera-a de uma forma vegetativa, à semelhança de um feijão que se deita fora e decide germinar ou prefere renunciar.
Ou ainda à semelhança da carraça na sua árvore, à qual, no entanto, a vida apenas tem a oferecer uma permanente hibernação. A pequena e feia carraça que confere ao corpo cor de chumbo e forma de uma bola, a fim de expor o mínimo de superfície possível ao mundo exterior; que alisa e endurece a pele para nada deixar filtrar e para que nada dela passe para o exterior. A carraça que se faz deliberadamente pequena e insignificante para que ninguém a veja nem a esmague. A carraça solitária, fechada e escondida na sua árvore, cega, surda e muda, e apenas ocupada durante anos a fio a farejar nos lugares à sua volta o sangue dos animais que passam e que jamais atingirá pelos seus próprios meios. A carraça podia deixar-se cair. Podia deixar-se tombar no solo da floresta, e, apoiada nas suas minúsculas seis patas, arrastar-se uns milímetros em qualquer sentido e dispor-se a morrer debaixo de uma folha, o que não constituiria uma perda, deus bem o sabe! Contido, a teimosa, obstinada e repugnante carraça permanece emboscada, vive e espera. Espera até que um acaso extremamente improvável lhe traga o sangue de um animal à sua árvore. E é apenas nessa altura que ela sai da sua reserva, se deixa cair, se pega, morde e mergulha nesta carne desconhecida…”

Patrick Süskind in “O perfume”

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